Da equação eu parte do Cosmos ao axioma Cosmos parte do eu


Contingente – Linha do Equador (2001), Adriana Varejão

“Nunca fomos catequizados”, afirma Oswald de Andrade em seu Manifesto Antropofágico para reclamar, desde um ponto de vista “tupiniquim”, uma epistemologia antropofágica capaz de resistir à colonização do pensamento pelo invasor ocidental. Não se trata de uma volta à um princípio “puro” e “intocado” de um passado pré-portugueses e espanhóis (e holandeses e franceses, até norte-americanos), mas a consciência assertiva de um estar no mundo de maneira porosa, relacional, canibal, enfim. Eu, parte do cosmos; Cosmos, parte do Eu. Eu devoro à tudo para que tudo faça parte de mim; porque eu estou em tudo, e tudo está em mim.

A alteridade canibal permite, assim, a des-hierarquização ontológica – ou melhor dizendo, a anarquia ontológica -, que surge de forma central no pensamento do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro. Como apresenta em Metafísicas Canibais (2018), se para os colonizadores das Antilhas a dimensão primária de distinção entre humanos e não-humanos passava pela existência da “alma”, do qual os primeiros seriam meros recipientes ocos; para os indígenas da América do Sul, essa distinção – sempre borrada, é preciso ressaltar – se daria através das materialidades corporais de cada ente. Dessa maneira, a concepção comum aos povos originários do “Novo Mundo” partiria da matéria para alcançar a metafísica, calcando-se na visão cosmológica de composição de mundo a partir de uma multiplicidade de pontos de vista, onde “todos os existentes são centros potenciais de intecionalidade, que apreendem os demais existentes segundo suas próprias e respectivas características ou potências” (Viveiros de Castro, 42).

A teoria cosmopolítica ameríndia implica imaginar um modo performativo de apercepção do mundo, no qual o universo é povoado por diversos agentes subjetivos, tanto humanos quanto não-humanos, mas igualmente providos de disposições perpectivas, apetitivas e cognitivas. De agência, em suma, em todas as suas manifestações que excedem as categorias de “humano” como sinônimo de “pessoa/sujeito”. Pois a “perspectividade”, isto é, a potencialidade ontológica de qualquer ente ocupar ou se deslocar de um ponto de vista para outro, não se qualifica enquanto propriedade distintiva entre espécies, mas, antes, como intensidade transespecífica, dando lugar à uma epistemologia e experiência de ser-no-mundo sempre atravessada pelo contágio, pelo deslocamento e pela transformação constante entre diferentes organizações sociais, símbolos e “códigos” semióticos que se respondem mutualmente. Nesse sentido, o “nós” não existe senão como conjuntura informada e determinada pela alteridade, que não deve ser entendida a partir da chave simplista, quase-teológica, de “desejar o desejo do Outro”, mas sim, a partir da potencialidade de uma circulação infinita de devir-outro.

“A troca, ou a circulação infinita de perspectivas – troca da troca, metamorfose de metamorfose, ponto de vista sobre ponto de vista; isto é: devir.” (Viveiros de Castro, 263)

Em seu projeto de uma antropologia pós-estruturalista, Viveiros de Castro formula então a proposta de uma “aliança intensiva”, em oposição à “aliança extensiva” da reprodução social regulada pelo capital a partir de sistemas de filiações (identidades, totalidades, indivíduos, coletivos, hierarquias políticas baseadas em categorias de raça, gênero e sexualidade) no vértice econômico-político do processo de hominização. Dessa maneira, visando a transformação das relações sociais em sua matriz ética-cognitiva, pensar através de uma “aliança intensiva” é propor uma reorganização do existente a partir da cosmo-política do perspectivismo ameríndio como forma tática de desativação das práticas e saberes que permitem a reprodução do poder, dando lugar, assim, à emergência de redes abertas de multiplicidade, em processos sempre cambiantes de alteridade e devir-outro.