a dignidade da morte tupinambá


Uma condição constante de guerra ditava a tônica das relações entre os grupos tupinambás, habitantes nativos da região da Guanabara, que sobreviveram menos de um século após a chegada dos colonizadores no Brasil. Guerreiros motivados pelo ciclo vital da vingança, entravam em embates corporais intertribais que terminavam, para os vencedores, com um banquete produzido a partir da carne derrotada. Aquele que matava o inimigo teria o direito de rachar o seu crânio. Participar deste ritual era o que fazia com que um homem tupi ganhasse um nome, o que faria a sua alma forte o suficiente para escapar das provações no caminho à Terra Sem Mal, quando chegasse a hora de se despedir do seu corpo físico.

 

Esta política da guerra, que mata, é contraponto a um outro tipo de fazer morrer que se vê na necropolítica contemporânea, exercício cruel de biopoder explicado por Achille Mbembe. Na necropolítica, a esterilização e modernização dos modos de aniquilar a vida do outro são a expressão de “civilização” dos extermínios em massa cometidos pelos poderes soberanos. Mbembe nos ensina que este processo tem início com a escravidão colonial, que retirou a alteridade da condição de sujeito, submetendo as vidas escravizadas à condição de propriedade. Anibal Quijano reconstrói a gênese deste processo, apontando que o desdobramento desta prática de sujeição foi a criação de toda uma teoria que se respaldou na “ciência” e “racionalismo” com o objetivo e estruturar o conceito de raça, corroborando com práticas políticas e econômicas de violência contra os corpos não-brancos.

 

Em outras palavras, na prática biopolítica da morte, localizar a alteridade em uma posição inferiorizada é a justificativa para extrair do colonizado sua potência de trabalho. É a oposição indigna ao modo tupi de guerrear. Os grupos indígenas ao aniquilar o inimigo, sugavam a força guerreira do opositor junto com seu sangue. O seu corpo estava implicado no ato de matar, diretamente. A proximidade física – ao contrário das frias máquinas que fazem morrer sem sujar as mãos do assassino – é um dos elementos que impede que um tupinambá perca sua dignidade no momento que se torna um derrotado de guerra. Está morto, mas ainda é sujeito e sua alma também poderá chegar à Terra Sem Mal. O vencedor, por sua vez, se torna melhor ao absorver as características do outro, pois reconhece no opositor a sua extrema potência e deseja, um dia, também poder morrer por mãos guerreiras, mantendo o impulso dinâmico da existência.

Mussa, Alberto. A Primeira História do Mundo. Rio de Janeiro: Record, 2014. Quijano, Aníbal. "Colonialidad del poder, eurocentrismo y Amércia Latina" La colonialidad del saber: eurocentrismo y ciencias sociales. Perspectivas Latinoamericanas. Buenos Aires: CLACSO, Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales, 2000. 201-246. Print.Mbembe, Achille. "Necropolitics." Public Culture 15. no. 1: 2003. Accessed 29 Sep 2018.