Geléia Geral


O canibalismo ameríndio sempre foi uma das chaves mais usadas durante o período da colonização como forma de demonstrar a barbárie dos povos nativos, marcando-os como seres irracionais e violentos. Essa associação continuou e continua bastante presente nas discussões sobre o índio, e creio que suas as distintas formas de a discutir marcam diversas facetas da cultura nacional.

Se no Romantismo brasileiro a figura do indígena foi resgatada como uma forma de tentar estabelecer um imaginário tipicamente nacional, aqui o canibalismo foi totalmente suprimido. Não haveria espaço para ele em uma literatura que colocava o índio “figurando nas óperas de Alencar cheio de bons sentimentos portugueses” (Andrade, 1928). Já com o Modernismo, a antropofagia começou a aparecer nos textos culturais como algo positivo, uma proposta estética e política. Não a recusa à cultura produzida pelos países do Norte, mas sim a sua deglutição. A proposta de Oswald de Andrade em seu Manifesto Antropofágico seria uma de entrarmos em contato com essa cultura imperialista, a deglutir e então transformá-la em uma nova coisa. Embora aqui possamos pensar que isso se aproxima perigosamente da imagem do melting pot pregada pelo liberalismo estado-unidense, não creio que seja o caso: pois aqui não há uma ideia de pacificação ou de convivência em utópica harmonia, mas sim de ataque e deglutição, “porque somos fortes e vingativos como o Jabuti” (Andrade, 1928). Jabuti que ganha seu escudo do crânio da violenta e poderosa onça que o atacou tão cegamente que acaba morrendo em consequência de sua própria violência, como nos conta o mito que relatei em paper anterior.

Enquanto Oswald de Andrade posicionou a antropofagia enquanto uma proposta estética, impulso ainda bastante forte na cultura brasileira contemporânea, como podemos ver a partir da importância da Tropicália e da ideia do desbunde na cultura nacional, Viveiros de Castro a posiciona como uma nova cosmovisão, uma metafísica canibal. Creio que a anedota que nos fala de indígenas afogando espanhóis para ver se seus corpos apodreceriam é bastante sintomática da sua proposição. Afinal, como o ch’ulel maia, definido por Diana Taylor como “the life in everything. Humans, animals, mountains, rivers, trees, corn and other forms of material existence in this indigenous world view share a life force”, haveria na cosmovisão ameríndia um antropomorfismo absoluto: todo vivente veria a si mesmo como humano. Aqui, portanto, “o antropomorfismo é uma inversão irônica completa (dialética?) do antropocentrismo. Dizer que tudo é humano é dizer que os humanos não são uma espécie especial, um evento excepcional que veio interromper magnífica ou tragicamente a trajetória monótona da matéria do universo (Danowski, Viveiros de Castro. 2014, p.97). Como podemos empregar essa cosmovisão como forma de criarmos novas formas de estar no mundo? Comentamos em aulas anteriores da importância de estarmos imersos em mais de uma epistemologia, e a certeira afirmação de Silva Cusicanqui de que “There can be no discourse of decolonization, no theory of decolonization, without a decolonizing practice.”, central a todas às discussões que tivemos ao longo da disciplina, parece cobrar essa ação.

Vimos algumas possibilidades dessas formas híbridas ao longo do curso: e aqui penso especialmente no texto de Gloria Anzáldua, no lema zapatista de um mundo donde caibam muitos mundos, e também na vertiginosa apresentação descrita por Taylor em Dead Capital (2018). Formar alianças, como proposto por Viveiros de Castro, parece uma estratégia central para essa nova forma de estar-no-mundo. E aqui não penso aliança como calcado em algo necessariamente rígido, mas inconstante e efêmero. Será que poderíamos pensar nossa pequena comunidade formada durante o semestre como uma dessas efêmeras alianças? Julgo que ao discutirmos diversas teorias e compartilhar diferentes visões e sensibilidades, construímos ao longo do semestre uma dessas formas de estar-no-mundo.

Danowski, Débora, and Eduardo Viveiros de Castro. Há mundo por vir?. Santa Catarina: Cultura e Barbárie, 2014. Print.de Andrade, Oswald. "The Cannibalist Manifesto." Third Text 13. 1999. 92-95. Taylor, Diana. "Dead Capital: Teatro da Vertigem, Bom Retiro" . . : , 2018.