Barbárie, com sorte


“Foi porque nunca tivemos gramáticas, nem coleções de velhos vegetais. E nunca

soubemos o que era urbano, suburbano, fronteiriço e continental.” (Andrade).

Assim, Andrade nos afirma que o que se nomeou não-civilizado, a partir de uma epistemologia europeia, constitui ‘nossa natureza’, nosso devir, um modo de existência e de liberdade que ‘nasce’ miscigenado, destruído, precário, uma assemblage. Nosso xamanismo transversal (Castro) nos permite tomar as coisas de um ponto de vista próprio, onde talvez caiba a multiplicidade das contradições que conviveram na America Latina desde o início do processo de colonização.

Coisas, pessoas, coisas, plantas, coisas, ideias, tudo – aprendemos na prática – será tomado, apropriado e utilizado para fins próprios. Tudo será transformado. E tudo está contaminado, pois o lixo e as bactérias que agem sobre ele trabalham a todo instante para a manutenção dos ciclos de vida, morte e vida. Citando aqui uma contribuição de Helio Oiticica, artista brasileiro que bebeu nas fonts de Oswald de Andrade para criar a Tropicália junto ao diretor de teatro José Celso Martinez Correa, do Teatro Oficina Uzyna Uzona, “toda pureza é um mito”. O estado de ‘coisa’ muitas vezes é o que nos define.

Desorientados, buscando ‘ganhar’ como um modo de ser, espelhamo-nos nos modelos velhos para que a Euopa pudesse nos reconhecer, nos afirmar. E nesta ideia de busca, perdemo-nos de nossos paradoxos. Caos nos define. O perder-se aqui não constitui um problema. O problema seria encontrar uma suposta saída. Andamos, seguimos, investigamos, sentimos medo. Bom Retiro 358 metros do Teatro da Vertigem espelha esta condição, esta sensação diária. Sempre em deslocamento. “Every step takes us further from utopia, further from any aspirations of care and relationality—human and non-human, animate and inanimate. Dystopia. Anti-utopia.” Taylor reflete. Talvez sejamos o prenúncio de um futuro, onde as apostas na chamada evolução tenham demonstrado que o que se pensou como passado e futuro estavam situados em outros contextos do que antes e depois. São sobrepostos, paralelos. São indígenas, selvagens. Um outro Cosmos possível. O possível no impossível. Por que não?

“Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros.

O instinto Caraíba.

Morte e vida das hipóteses. Da equação eu parte do Cosmos ao axioma Cosmos parte

do eu. Subsistência. Conhecimento. Antropofagia.

Contra as elites vegetais. Em comunicação com o solo.” (Andrade).

Talvez a maior/melhor produção humana no contexto civilizatório seja a ação de DESTRUIÇÃO. Tomada em diferentes contextos e práticas, como a “destruição criativa”, conceito apresentado por Schumpeter nos anos 1940 para descrever o procedimento do capitalismo; ou ainda a relação da destruição com as Guerras, a ideia de destruição segue junto com a ideia de evolução. A união dos povos, das possibilidades, se fará possivelmente após a total destruição de nossas materias vivas. Exaustos de manipular e fazer circular as coisas durante séculos, suas intenções, ideologias e imaginários, perceberemos que após o grande espetáculo da destruição capitalista e sua profunda excitação erotica que nos instiga e desperta, que o óbvio, que ‘a prova dos nove’, estava bem mais próxima do que a complexização das teorias.

Em diálogo com a proposta/ reflexão urbana do Teatro da Vertigem, o Mapa Teatro (Colômbia) apresentou este ano a instalação TOPOGRAFÍAS: UTOPIAS Y DISTOPIAS (desenhado em parceria comigo para o Festival Mirada de Teatro, Santos/SP Brasil), uma ‘reflexão selvagem’, urbana e pos-urbana, criando uma floresta entre real e artificial que busca representar um mundo pós sua destruição e reapropriação pela natureza. Neste lugar não há moral, não há mais regras ou definições: lugar de reinvenção. Numa cabine, encontramos trechos do Manifesto Antropofágico escrito em divisórias de plastico, talvez o único material que resistirá após as destruições: como imaginar este futuro senão pela afirmação das críticas do passado? Respostas que foram dadas anteriormente por Oswald e também por Rosa Luxemburgo. Sua frase “Socialismo ou Barbárie” hoje foi redefinida por “Barbárie, com sorte”.

Vídeo da instalação:

 

para saber mais: https://www.bolellireboucas.com/topografiacuteas-utopias-y-distopias.html