Atravessar o trauma, atravessar as polaridades


A invenção da modernidade talvez seja um dos mais bárbaros/sofisticados acontecimentos da experiência humana no que chamamos Terra. É sempre pertinente perceber como na maioria das colônias (falo a partir da minha experiência no Brasil/América Latina) foi construído um sentimento de auto-inferioridade e impotência diante de uma cultura ‘maior/melhor’, ‘erudita’, oficial. No Rio de Janeiro do século XVIII/XIX por exemplo, o fascínio pelo modelo francês/inglês autorizou, entre tantas atrocidades, a demolição de parte da cidade para a construção da cidade nova, importando diretamente o modelo francês de Haussmann na reconfiguração de Paris. Nas novas avenidas, públicas, as pessoas só entravam vestidas apropriadamente, e falavam francês. Os ex-escravos, que nunca haviam calçado sapatos até então, amarravam seus pés para o sapato pudesse caber e poder adentrar o novo espetáculo criado, sempre como estratégia para a exclusão/limitação de acesso.

Entre a estrutura de governo e a dimensão do indivíduo, temos abandonado conscientemente a costura entre as partes, já que toda a noção construtiva, pedagógica e de elaboração até então tem operado entre os polos certo/errado, bom/mau, direita/esquerda, rosa/azul, homem/mulher, vida/morte. Este poder contaminou nossa noção de verdade e há séculos tem sido compartilhado, ensinado e forçado a ser apreendido, garantindo a produção e manutenção de traumas de todo o tipo. Talvez a palavra que melhor descreva nossas sociedades seja o trauma, em diferentes aspectos, talvez o trauma seja um elemento coletivizador do humano em suas diferentes manifestações e repressões. Ainda, o binômio civilização-barbárie tem sido apresentado dando em geral ênfase ao primeiro, tomando a barbárie como uma lado obscuro da civilização. Eis aí escondida a dimensão do trauma?

Outro termo que pode talvez elucidar sobre nosso (e digo nosso pois como ex-colônias, aceitamos/assumimos este desejo eurocêntrico/destruidor/castrador e devir em nós, tornando-nos eles apesar de nos conflituarmos com isso, numa espécie de convulsão) modo de presença no mundo seja a perversão. Como uma distorção da crueldade, própria na natureza, o homem como ideia “branca, limpa e racional” criou a perversão como um jogo, um prazer, uma manutenção de sua civilização fora do seu contexto diretamente social. Esta limpeza/beleza há que vazar por algum lugar. E assim fizeram das colônias seus esgotos, a existência do que não era explicitado em suas sociedades de origem.

Assim, ainda hoje, é possível identificar inúmeras práticas e ações que mantém esta estrutura. Países como a Finlândia, por exemplo, jogam seus lixos na Africa, Índia e América do Sul, mantendo seu território limpo, higienizado, apaziguado e socialmente ‘neutro’ para os seus. A possibilidade de aceitar a morte (Mbembe), a sujeira, a contaminação, negada em geral pelos países colonizadores, talvez pudesse esclarecer sobre a real dimensão do paradoxo humano a seu favor. Aceitar o trauma e buscar atravessá-lo, aceitar a perversão e buscar revertê-la, aceitar a dualidade e buscar caminhar entre. A invenção do certo pressupõe a presença do errado também como possibilidade, não apenas como oposição mas coexistência.

Junto `as leituras de Mbembe, Quijano e Cusicanqui, acrescento a esta discussão o geógrafo brasileiro Milton Santos, incessante trabalhador para a descolonização dos estudos de urbanização do chamado Terceiro Mundo. Santos foi um dos grandes nomes da renovação da geografia no Brasil na década de 1970 e da expansão dos estudos da globalização nos anos 1990, a partir do ponto de visto das ‘periferias’. Em livros como Metamorfoses do Espaço Habitado, Território – Globalização e fragmentação, Por uma geografia nova, Território, territórios – Ensaios sobre o ordenamento territorial, O País Distorcido, entre outros, Santos nos deixou como legado a ideia de que passamos de escravos à consumidores, sem compreender a construção/dimensão da cidadania. Compreendermo-nos como cidadãos significa compreender a implicância de cada um de nós, nossa responsabilidade e pertencimento, como Quijano demonstra sobre a constituição branca nas Americas, excludente. Assim, em seus últimos pensamentos (faleceu em 2001), Santos afirmou que até então, a humanidade realizou uma espécie de ensaio sobre a civilização, pois constatou que como estamos distantes desta ideia como prática. Acredito que este ponto de vista nos ajude a compreender nossa condição, criando forças para seguir com o trabalho de descolonizar, desconstruir e reinventar o simples, a convivência e a coexistência em sua plena diversidade como uma celebração.